Amar a Igreja
José Luiz Delgado
Mistério que atravessa os séculos, a Igreja não é somente nossa mestra: é também, segundo a velha fórmula que João XVIII popularizou na encíclica famosa, nossa Mãe, e é preciso amá-la com esse amor único que cada qual dedica à própria mãe, quase não podendo ver nela defeito algum e absolutamente não admitindo que dela falem mal os outros, quanto mais o próprio filho. Ás vezes, aqui e ali, cai-se na tentação de louvar Jesus e execrar a Igreja, aceitar aquele e recusar esta, pregar um cristianismo pessoal à revelia da Instituição. Mas, como aderir plenamente a Jesus sem aderir à Igreja que Ele ama e em que quer ser encontrado?
Pois, o que Jesus fez foram fundamentalmente duas maravilhas: primeiro, a Redenção, a reconciliação definitiva da criatura com o Criador, a nova e eterna aliança; depois, a Igreja. Entre as mil e uma maneiras pelas quais Jesus poderia dar continuidade, no tempo e no espaço, à obra suprema da Redenção, Ele preferiu reunir um grupo de homens e longamente prepará-los, instruí-los, formá-los, e Se lhes revelar de uma forma muito mais completa do que a das Suas pregações às multidões, e mandar que fossem por toda a terra para converter e batizar todas as nações. E não somente assegurou que estaria com esse grupo especial, os apóstolos, “todos os dias, até a consumação dos séculos”, nem apenas lhes deu todos os poderes sobre a terra (“tudo quanto ligardes na terra será ligado no céu, tudo quanto desligardes na terra será desligado no céu”), mas sobretudo declarou-se intimamente identificado com eles: “quem vos recebe, a mim recebe”; “quem vos ouve, a mim ouve; quem vos despreza, a mim despreza”.
É essa identidade que constitui, essencialmente, o Mistério da Igreja, Corpo e Esposa de Cristo, segundo S. Paulo. Jesus poderia ter optado por se encontrar com o coração de cada homem, no íntimo de cada um. Optou, no entanto, por se encontrar com os homens mediante um conjunto de enviados, de amigos, que Ele escolheu e transformou. Talvez tenha sido porque Ele conhece a natureza humana um pouquinho melhor que nós outros... E sabe como, entregue a nós mesmos, nós nos desviamos nas nossas indisciplinas, nas nossas fantasias, nas nossas ilusões.
Jesus criou o Vaticano e ditou, pessoalmente, um por um os decretos que organizam a instituição eclesiástica? É claro que não. Tudo isso é a parte humana da obra que culminou no Calvário; é a nossa História. Mas, evidentemente, é fazer uma idéia muito tosca de Deus, do poder e da onisciência de Deus, imaginar que Ele não teria visto essa construção humana, até porque, se a conhecesse, não a teria aprovado... Jesus quis a Igreja e de antemão conhecia os desdobramentos que ela teria na História e, não obstante, aos discípulos (primeiramente, mas também como é óbvio, aos sucessores deles) assegurou: “quem vos recebe, a mim recebe”. Pois tampouco mandou (pelo menos não consta dos Evangelhos) que os apóstolos transmitissem a mesmíssima missão a novos discípulos que eles mesmos escolhessem, mas obviamente não só sabia disso como era esse o Seu exato plano: ou não queria ele que os apóstolos se espalhassem por toda a terra e evangelizassem todas as nações?
Não significa isso que tudo, na Igreja, seja perfeito e irretocável, ou que nela não exista falha ou defeito algum. Aliás, de fato, nela mesma não há. Porque é preciso nunca perder de vista a boa distinção que Maritain destacou no subtítulo de um dos seus últimos livros: a distinção entre a pessoa da Igreja (que é santa e imaculada) e o seu pessoal, que somos todos nós, desde o Papa até o menor dos fiéis: todos sempre sumamente frágeis e pecadores. No pessoal da Igreja – e não só no pessoal do passado, mas também no do presente – sempre podemos encontrar deserções e renegações. Na pessoa da Igreja, não: apesar da fraqueza dos seus membros, ela não traiu nem trairá o Cristo. Ela é sem mancha e sem ruga. Ela é que nos salva e nos santifica.
"Cristão é meu nome e Católico é meu sobrenome. Um me designa, enquanto o
outro me especifica.Um me distingue, o outro me designa. É por este sobrenome
que nosso povo é distinguido dos que são chamados heréticos."
(São Paciano de Barcelona, Carta a Sympronian, 375 D.C.)