quinta-feira, 14 de dezembro de 2006
Só os documentos têm voz
Não sei se foi sonho ou realidade. Talvez as duas coisas. Ou um desses sonhos que se tem meio dormindo, meio acordado, e algum pedaço da vida - um som, uma voz, um grito – se intrometem, mas já sem nexo com o mundo de onde veio. Foi mais ou menos o que me aconteceu quanto ao que passarei a contar: um sonho entremeado de realidade e em alguns momentos muito próximo ao estado de vigília, embora eu não saiba dizer quanto tempo durou, se ainda continua. Em todo caso, direi o que a memória conseguiu reter. Se o relato carecer de lógica, isto se deve à natureza dos sonhos.
Havia um cidade – eu era um dos habitantes – que estava para ser envolvida por um importante acontecimento. Dia e mês estavam marcados. Tratava-se da chegada de um personagem de destaque e eu percebi que a data servia apenas como pretexto para quebrar o impacto da surpresa, já que ele poderia chegar a qualquer instante.
Acontece que por uma necessidade de defesa contra o inesperado, o imprevisto, as pessoas haviam estabelecido aquela data como uma espécie de cordão de isolamento, a fim de criar uma área isenta de perigo. Ele chegaria na data pré-fixada, seria recebido com as devidas homenagens, depois do que tudo voltaria à normalidade e a população não passaria pelo transtorno de ter que alterar os horários comerciais.
Ocorria ainda que a expectativa, devido talvez à afamada imagem do visitante, não permitia que a vida transcorresse com a costumeira normalidade. Pouco a pouco foi crescendo um clima de alvoroço. Era como um contágio coletivo. Em certos edifícios públicos, onde grupos de cidadãos freqüentemente se reuniam para falar sobre o acontecimento, os mais avisados advertiam que ele – o Esperado, o Visitante, o Personagem, como se queira chamar -, poderia e deveria chegar na data estabelecida, sendo indispensável que todos estivessem preparados, disso dependia a segurança pessoal de cada um e o bem-estar da coletividade. Alguns davam a entender que ele era uma autoridade: “O que fiz está feito” – “o rei é a lei”- “A verdade coincide com a alma do palácio”.
Quanto à vinda dele à cidade louvavam só as implicações políticas, nem de longe pensando no lado aventuroso acontecimento. Outros, no entanto, tendo horror à burocracia, sentiam, por trás do gesto (a visita), o desejo de encontro com cada habitante da cidade.
Foi justamente por isso que, desdenhando as manifestações públicas, em geral estereotipadas, ele resolveu chegar de repente, de modo a evitar as costumeiras apoteoses e ter a liberdade de aparecer numa idade diferente daquela em que a maioria o esperava. Decidiu chegar sozinho e assim poder se apresentar de forma simples, indiscriminadamente, fora das costumeiras cerimônias . Não desdenhou a data agendada, pois que não era um demolidor fanático nem se prendia à aparências. Se não veio no dia assinalado no calendário, também não se afastou das imediações.
Vi-o entrar pelo jardim de uma residência burguesa, atravessar o jardim. Talvez porque não me preocupo com detalhes externos, não gravei na memória as minúcias. Lembro só que havia luzes e muito brilho, um entra e sai de gente, o mesmo clima reinante em cada recanto da cidade – aquela espécie de esponja que absorvia e esgotava o sentido das coisas.
Ele chegou em silêncio, entrou sem nenhuma timidez, passou desinteressado pelas salas, deteve-se na cozinha. Era como se não tivesse chegado, mas estivesse ali desde sempre. Buscando o olhar da mulher ocupada com o forno microondas, disse com voz amiga, sem apelar para frases de efeito: “Boa tarde”.
A mulher nem se assustou, só encarou-o desconfiança. “Alguma entrega"?
“Eu sou o esperado”.
As palavras não encontraram eco, ficaram flutuando no espaço. Depois dissiparam-se no clima de alvoroço em que as pessoas iam e vinham como se alguém, por maldade ou simplesmente para se divertir, lhes tivesse dado corda, transformando-as em bonecos móveis
A mulher empurrou-o com o olhar. No fundo não estava esperando ninguém, entrara no jogo da expectativa, talvez por curiosidade ou porque, tratando-se de um notável, é bom não esquecer as vantagens que se pode obter.
Olhou o jovem alto e magro, cujo ar parecia desprender um misto de presença e ausência. O Esperado deveria ter um aspecto imponente, chegar publicamente em comitiva e carro aberto, ser saudado por todos e pelas autoridades. Não assim, desacompanhado e a pé feito um zé ninguém. Teve quase a certeza de estar sendo vítima de uma impostura. De qualquer maneira, fosse ou não fosse impostura, não era aquele o tipo de pessoa que ela e sua família convidariam para entrar e muito menos ficar. Contudo, não tomou a iniciativa de livrar-se do homem sem se certificar junto aos familiares. Saiu para uma rápida consulta, demorou uns instantes confabulando e voltou trazendo o veredito, claro e sucinto, a fim de evitar perda de temp
“Nosso objetivo principal, aliás o único, é conseguir a assinatura Dele, autenticando o Natal para o currículo de nossa família. Se o senhor tem carteira de identidade para provar que é mesmo o Esperado...”
Infelizmente não tinha. Não havia, pois como provar sua identidade. Impossível fazer-se reconhecido.
Estava diante de uma fato: todos haviam sido condenados à branca mudez dos papéis. Só os documentos têm voz.
Maria da paz Ribeiro Dantas
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18:33.