No dia 11 de fevereiro comemoramos o
Dia Mundial do Enfermo. Por isso, considero oportuna uma reflexão sobre um dos pontos que mais suscita questionamentos entre as pessoas: o sofrimento. A dor nos acomete de diversas maneiras e, nos momentos difíceis, muitos se interrogam: Por quê? Por que eu? Por que nesta hora em que eu era tão necessário?
O pensador católico
Gabriel Marcel, escrevendo sobre o sofrimento a uma sua prima, definiu-o como “uma revolta metafísica”. Aparentemente, nunca vamos conseguir sondar as razões do sofrimento até as suas profundidades: dores físicas, psíquicas, mentais, a sensação de ser inútil, sentir-se alquebrado, já sem forças. A enfermidade é, de fato, uma tragédia, se a olharmos apenas em si. É uma tragédia que faz parte do nosso dia-a-dia.
Por isso, aqueles que não creem, pautando-se pela superficialidade das coisas, chegam a pensar na eutanásia como “solução” extrema para a enfermidade, o sofrimento e a dor. Na verdade, isto atenta contra a dignidade do ser humano, constituindo-se em pecado contra a vida, o maior dom de Deus. Apenas a fé pode nos conduzir a encarar o sofrimento de forma positiva, como uma situação que pode ser fecunda e libertadora.
Pensar na doença como meio para a santificação pessoal e para a redenção do mundo é algo que parece totalmente anacrônico em relação ao nosso tempo, a era da produtividade e da eficácia. Entretanto, toda enfermidade é um período de humildade, de humilhação mesmo, que expõe nossas próprias fraquezas, submetendo-nos à dependência de outros, encarregados de cuidar de nós. É momento de nos colocarmos face-a-face com nossa finitude humana, diante do Deus vivo e verdadeiro.
Experimentar nossas próprias limitações torna-nos mais humanos e, por isso mesmo, mais próximos de Deus, como Jesus revelou a São Paulo: “Basta-te a minha graça, porque é na fraqueza que se revela totalmente a minha força”
(2Cor 12,9). Por outro lado, a aceitação do sofrimento não pode jamais significar um conformismo masoquista diante dos problemas. Deus nos concedeu aptidões para ser empregadas na construção do mundo e na promoção do próprio ser humano.
No caso específico das doenças, a humanidade evoluiu de tal forma, que uma das primeiras instituições que a era cristã viu surgir foram os hospitais. Alguns eram muito bem providos, para os padrões da época, de médicos, enfermeiros, farmacêuticos e centros de farmacologia, funcionando em pavilhões conexos aos próprios hospitais. Recolhiam-se os enfermos para assisti-los, curá-los, quando possível, buscando debelar as epidemias, tão comuns ainda pela Idade Média em fora. Os doentes em estágio terminal podiam encontrar no hospital um lugar para morrer em paz e bem assistidos.
Atualmente, chegamos a um desenvolvimento científico e tecnológico jamais visto no campo da saúde: pesquisas, análises, farmacologia, novas ténicas que vão avançando, com maior ou menor rapidez, dependendo da área. Decepcionam, porém, os resultados ainda limitados das pesquisas sobre o câncer e o vírus HIV, que já se conseguiu isolar, mas ainda não eliminar. Ambos representam grandes desafios, do ponto de vista científico. A medicina parece estar humilhada diante desses fenômenos.
Evidentemente, não acompanho de perto o progresso científico, mas gostaria de lançar um apelo aos governos e entidades da sociedade civil, no sentido de que as pesquisas sobre doenças ainda incuráveis, verdadeiras tragédias para a humanidade, recebam prioridade de recursos para experimentos. E que estes experimentos não ofendam a dignidade humana, porém respeitem a ética e a moral cristãs. É desumano que se possa dar maior ênfase aos projetos ligados à supremacia política e econômica, como tecnologia espacial e bélica, do que à melhoria da qualidade de vida da população.
Aqui entra a questão da saúde, um dos mais graves problemas do nosso país, em âmbito federal, estadual e municipal. Não se pode usar a enfermidade como trampolim de poder ou como recurso de manobra política. Isso, infelizmente, ainda é feito e eu diria que é, de certo modo, criminoso, porque há leis estabelecidas quanto ao que se deve fazer em atendimento aos enfermos. E os doentes, hospitais e médicos não podem ser joguetes de grupos interessados apenas nos lucros, a qualquer preço.
Sobre os profissionais da saúde cabe, também, uma palavra. Tenho grande veneração por todos, e lhes evoco um trecho do livro do Eclesiástico, no qual o médico é colocado como aquele que parece estar mais próximo da ciência de Deus:
“Honra o médico por causa da necessidade, pois foi o Altíssimo quem o criou. (Toda a medicina provém de Deus), e ele recebe presentes do rei: a ciência do médico o eleva em honra; ele é admirado na presença dos grandes. O Altíssimo deu-lhe a ciência da medicina para ser honrado em suas maravilhas; e dela se serve para acalmar as dores e curá-las” (Eclo 38,1-3.6-7).O próprio Jesus se declarou médico, ao dizer que tinha vindo ao mundo para aqueles que precisavam d’Ele, os doentes
(Mt 9,12). A seu exemplo, os que trabalham com os enfermos não são apenas profissionais. Exercem uma missão, a serviço da vida e da saúde, do bem-estar corporal, psicológico e, consequentemente, espiritual daqueles que estão sob seus cuidados. É claro que merecem um salário condizente com seu preparo e esforço, mas sua maior recompensa deve ser a reação positiva do enfermo à sua atuação, à sua presença e à sua competência. Que o Cristo, Médico dos corpos e das almas, por intercessão de São Lucas, padroeiro dos médicos, os abençoe a todos!
Finalizo, relembrando o conteúdo de um texto profundamente consolador: a mensagem do Papa Paulo VI, do dia 8 de dezembro de 1963, na conclusão do Concílio Vaticano II, dedicada “aos pobres, aos doentes e a todos os que sofrem”:
“Para vós todos, irmãos que suportais provações, visitados pelo sofrimento sob infinitas formas, o Concílio tem uma mensagem muito especial. O Concílio sente, fixados sobre ele, os vossos olhos implorantes, brilhantes de febre ou abatidos pela fadiga, olhares interrogadores, que procuram em vão o porquê do sofrimento humano, e que perguntam ansiosamente quando e de onde virá a consolação. Irmãos muito amados, sentimos repercutir profundamente em nossos corações de pais e pastores os vossos gemidos e a vossa dor. E a nossa própria dor aumenta ao pensar que não está no nosso poder trazer-vos a saúde corporal nem a diminuição das vossas dores físicas, que médicos, enfermeiros, e todos os que se consagram aos doentes, se esforçam por minorar com a melhor das boas vontades.Mas nós temos algo de mais profundo e de mais precioso para vos dar: a única verdade, capaz de responder ao mistério do sofrimento e de vos trazer uma consolação sem ilusões: a fé e a união das dores humanas a Cristo, Filho de Deus, pregado na cruz pelas nossas faltas e para a nossa salvação. Cristo não suprimiu o sofrimento; não quis sequer desvendar inteiramente o seu mistério: tomou-o sobre si, e isto basta para nós compreendermos todo o seu preço. Ó vós todos, que sentis mais duramente o peso da cruz, vós que sois pobres e abandonados, vós que chorais, vós que sois perseguidos por amor da justiça, vós de quem não se fala, vós os desconhecidos da dor, tende coragem: vós sois os preferidos do reino de Deus, que é o reino da esperança, da felicidade e da vida; Vós sois os irmãos de Cristo sofredor; e com Ele, se quereis, vós salvais o mundo. Eis a ciência cristã do sofrimento, a única que dá a paz. Sabei que não estais sós, nem separados, nem abandonados, nem sois inúteis: vós sois os chamados por Cristo, a sua imagem viva e transparente. Em seu nome o Concílio vos saúda com amor, vos agradece, vos assegura a amizade e a assistência da Igreja, e vos abençoa".
Dom Eusébio Oscar Scheid
arcebispo da Arquidiocese do Rio de Janeiro.