quarta-feira, 24 de janeiro de 2007
As mil faces da Felicidade!
Qualquer definição seria limitada, pois a felicidade pode ser feita tanto de momentos extraordinários quanto de detalhes triviais. Contardo Calligaris psicanalista, autor de vários livros, fala sobre amor, espiritualidade, busca de realização pessoal e coragem de bancar os próprios desejos.*
A busca da felicidade leva as pessoas ao divã?
Geralmente as pessoas trazem ao consultório questões mais específicas: sofrimentos ou dificuldades do momento. Pode-se dizer que estão em busca da felicidade, como qualquer um de nós, mas isso não significa que todas as dores nos tornam infelizes. A felicidade não é simplesmente a ausência de dor.
Coisas pequenas que me fazem feliz...
Gosto dos rituais do cotidiano. De ficar deitado na cama numa manhã de inverno, com o sol entrando pela janela, um jornal fresquinho e um capuccino quente em mãos. O que quero dizer é que existe uma felicidade pontual e descontínua. Sendo assim, a lista é interminável e cada um tem a sua.
A cultura influencia nosso ideal de contentamento?
A felicidade é absolutamente cultural. Todos nós queremos ser felizes porque nossa cultura valoriza esse estado de espírito. O chato é que virou uma obrigação.
Temos necessidade de ostentar a felicidade, como um troféu, só para provar que nossas escolhas estão certas?
Em certa medida, sim, porque estamos num mundo em que o valor de cada um depende da imagem de sucesso, o que inclui algum tipo de contentamento que possa ser verificado pelos outros. Nesse aspecto, a felicidade contribui para o status social. A década de 80, sobretudo, equiparou o ideal de felicidade ao ideal de "invejabilidade". Quanto mais invejada, mais feliz você era considerada. Já entre os intelectuais, se for feliz demais, será vista como uma babaca, pois significa que está satisfeita com a realidade e não quer transformá-la - o que revela falta de inteligência crítica.
É por causa de coisas assim que a felicidade pode ser considera tão suspeita?
Sim, pois essa felicidade obrigatória está a serviço da manutenção de uma grande máquina de consumo. E eu não falo só do consumo no sentido banal, como ir ao cabeleireiro... Como sou obrigado a ser feliz - e aparentar isso -, preciso cada vez mais não só de produtos que expressem o meu grau de sucesso e satisfação como também de pessoas e de experiências que provem, a mim mesmo e ao mundo, que estou indo bem... e esse círculo tende ao infinito. Daí vem a minha desconfiança. Já se vê que nesta entrevista não vamos chegar a nenhuma receita de felicidade...
Como escapar dessa cilada?
Mudando o foco. Para mim, o que faz a qualidade de uma vida não é a felicidade, mas a intensidade e a variedade. Assim, não diria que desejo apenas felicidade aos meus filhos, porque desse modo eles não conheceriam uma ampla parcela da existência, que inclui medos, separações, perdas, dores, doenças. Tudo isso faz parte da experiência humana. Eu acho que vida boa é aquela que é vivida intensamente, com todo o seu leque de emoções.
Sob essa perspectiva, ser feliz para sempre, seria amputar um pedaço importante da existência? Claro, esse ideal, de ser feliz para sempre, é um pouco idiota chato até, porque a vida é infinitamente mais variada. Voltando aos filhos: é claro que eles vão se apaixonar, brigar, se apaixonar de novo, prestar concurso e levar bomba... Eu sou pai, certamente não direi: "Que beleza, foram reprovados!" Mas sei - e gosto de saber - que existem muitos momentos assim e que, quando eles surgirem, não vou concluir que a vida é uma porcaria porque não estou sendo feliz para sempre. O interessante é dar a cada um desses momentos o seu justo nível de intensidade.
Existem algumas dores que não devemos perder por nada deste mundo. Quando o meu pai morreu, foi velado em sua casa, na Itália, e, na hora em que o caixão saiu, ocorreu uma cena comovente no portão. No meio de uma pequena multidão formada por familiares, amigos e provavelmente todos os seus pacientes - ele era médico -, de repente, uma mulher gritou: "Viva o dr. Calligaris!". No ato, as pessoas começaram a aplaudir. E meu pai foi embora assim, sob uma longa salva de palmas. Eu me derreti, por respeito à vida do meu pai e por ver o amor que essas pessoas também tinham por ele. Me sinto satisfeito por ter vivido a experiência. Não gostaria de ter passado esse dia fechado no quarto, anestesiado por algum calmante. É paradoxal, porque não me alegrei pela morte de meu pai, mas foi uma felicidade ter vivenciado essa despedida fortemente, como devia ser.
Creio que cada um de nós tem o direito de construir um sistema de mundo que lhe seja tolerável. Mas, independentemente das crenças particulares, o fato é que a humanidade padece de uma doença incurável: nós queremos saber qual é a finalidade da existência. Como não nos contentamos em simplesmente existir e viver o presente, nossa modalidade preferida de tempo é o futuro. E assim a felicidade é protelada para quando eu me casar, quando eu me separar, emagrecer, tiver dinheiro, me aposentar...
O que a psicanálise tem a ver com a felicidade?
Ela não garante nada, nem é legítimo esperar isso. Mas pode levar uma pessoa a viver cada vez mais intensamente a vida que ela própria se dá. A questão é que a gente se dá sempre muito menos do que poderia. Nos entregamos pouco aos outros e não nos permitimos desejar o que de fato desejamos. Então, se você me perguntar para que serve uma análise, digo que serve para ajudar a bancar o desejo. Serve para você desistir de prestar vestibular para computação, pensando no emprego, quando o que quer mesmo é ser médica...
O que nos impede de assumir nossos desejos? O preço. Sempre que você faz uma escolha, tem que abdicar de todas as outras possibilidades. Não dá para ser católico, protestante e espírita* ao mesmo tempo.
*(grifos meus) *Entrevista concedida a Déborah de Paula Souza
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18:03.